sábado, 8 de fevereiro de 2014

'Confie em Mim"

Livro - Confie em Mim - Até Onde Você Iria por Amor à sua Família?

Olá meninas(os)tudo tranquilinho?
Aqui no meu Sampa,esta um calorão daqueles,rs...mas vamos que vamos...
Já tem um tempinho que li este livro,até comentei com a Lia( lia no mundo da lua ) que estava lendo e
acabei esquecendo de dar o meu veredito,rs...
O livro Confie em Mim - Até Onde Você Iria por Amor à sua Família?(autor:Harlan Coben)  fala do relacionamento entre pais e filhos,de como é importante o dialogo...fala também de misterio...eu gostei e indico,fazia um bom tempo que queria lê-lo...

Vamos a Sinopse...

Os primeiros relatórios não revelam nada importante. Porém, quando eles já começavam a se sentir mais tranquilos, uma estranha mensagem muda completamente o rumo dos acontecimentos: "Fica de bico calado que a gente se safa."

Perto dali, a mãe de Spencer, Betsy, encontra uma foto que levanta suspeitas sobre as circunstâncias da morte de seu filho. Ao contrário do que todos pensavam, ele não estava sozinho naquela noite fatídica. Teria sido mesmo suicídio?

Para tornar o caso ainda mais estranho, Adam combina ir a um jogo com o pai, mas desaparece misteriosamente. Acreditando que o garoto está correndo grande perigo, Mike não medirá esforços para encontrá-lo.

Leia o primeiro capitulo

MARIANNE BEBIA A TERCEIRA DOSE de Cuervo, perplexa diante de sua capacidade de destruir tudo o que havia de bom em sua vida patética, quando o homem a seu lado praticamente berrou:

– Vou dizer uma coisa, princesa: o criacionismo e o evolucionismo são totalmente compatíveis.

Marianne sentiu gotinhas de saliva atingirem seu pescoço. Fez uma careta de nojo e olhou rapidamente para o homem. Ele tinha um bigode farto, saído diretamente de um filme pornô dos anos 1970. Sentara-se à direita dela. A mulher que ele tentava impressionar com este assunto tão interessante, uma loura de cabelos descoloridos e quebradiços feito piaçava, estava sentada à esquerda de Marianne, que teve a infelicidade de estar no meio daquele encontro casual.

Tentou ignorá-los, olhando para seu copo como se fosse um diamante bruto a ser lapidado para um belíssimo anel de noivado. Esperava que isso fizesse o homem de bigode e a mulher de cabelos de piaçava desaparecerem. Em vão.

– Você está doido – disse a Piaçava. – Você ainda nem me ouviu. – Tudo bem, diga. Mas continuo achando que você está doido. Marianne interveio e disse: – Um de vocês não quer trocar de lugar comigo? Assim poderão conversar melhor. O Bigodudo pousou a mão no braço dela. – Fique aí, mocinha, quero que você ouça também. Marianne pensou em protestar, mas talvez fosse mais fácil ficar calada.

Voltou a atenção para sua bebida. – Vocês conhecem a história de Adão e Eva, certo? – perguntou ele. – Claro – respondeu a Piaçava. – E acredita nela? – Que Adão foi o primeiro homem e Eva, a primeira mulher? – Isso. – Claro que não. Você acredita? – Claro que acredito. – Ele acariciou o bigode como se fosse um pequeno roedor que precisasse ser tranqüilizado. – Segundo a Bíblia, primeiro surgiu Adão, e depois, da costela dele, foi criada Eva.

Marianne tomou um gole de tequila. Ela bebia por muitos motivos. Quase sempre para se divertir. Já estivera em muitos lugares como aquele, na esperança de encontrar alguém e, com sorte, conseguir mais que um simples bate-papo. Nesta noite, no entanto, não queria arrumar companhia. Estava bebendo para anestesiar os sentidos, com indiscutível sucesso. Aquela conversa sem pé nem cabeça até que servia de distração. Aliviava a dor.

Ela havia metido os pés pelas mãos. Como sempre. Toda sua vida se resumia a uma fuga constante de tudo o que era certo e decente, sempre em busca do inalcançável, uma eterna monotonia com eventuais – e patéticos – pontos altos. Ela destruíra algo bom e agora, quando tinha tentado consertar as coisas, bem, se atrapalhara novamente.

No passado, tinha magoado as pessoas mais próximas dela, as que mais amava. Elas eram seu clubinho exclusivo de vítimas emocionais. Mas recentemente, graças a uma mistura de burrice e egoísmo, ela vinha acrescentando gente que mal conhecia à lista de atingidos pelo furacão Marianne.

Por algum motivo, ferir desconhecidos parecia pior. Todos fazemos isso com aqueles que amamos, não é? Mas machucar inocentes, isso só podia ser carma.

Marianne havia destruído uma vida. Talvez mais de uma. E para quê? Para proteger sua filha. Ou foi o que ela pensou. Burra.

– Pois bem – disse o Bigodudo –, foi Adão que gerou Eva. Gerou, ou seja lá qual for o termo certo.

– Papo mais machista – disse a Piaçava. – Mas é a palavra de Deus. – Que a ciência já provou que estava errada. – Espere, princesa. Escute. – Ele ergueu a mão direita. – A gente tem Adão – depois ergueu a esquerda – e a gente tem Eva. E tem o Jardim do Éden, certo? – Certo.

– Então Adão e Eva têm dois filhos, Caim e Abel. E depois Abel mata Caim. – É Caim quem mata Abel – corrigiu a Piaçava. – Tem certeza? – Ele franziu o cenho, pensando no assunto. Depois deu de ombros. – Tanto faz. Um deles morre. – Abel. Quem mata é Caim. – Jura? A Piaçava fez que sim com a cabeça. – Tudo bem, então sobrou Caim. A questão é: com quem ele reproduziu?

Quer dizer, a única mulher disponível ali era a mãe dele, Eva, que, àquela altura, já era uma coroa. Então? Como foi que a humanidade se multiplicou?

O Bigodudo se calou, como se estivesse à espera dos aplausos. Marianne revi- rou os olhos.

– Percebe o dilema? – Talvez Eva tenha tido outra criança. Uma menina. – E Caim transou com a irmã? – perguntou o Bigodudo. – Claro. Naquela época, todo mundo comia todo mundo, não comia? Quer dizer, Adão e Eva foram os primeiros. Não havia outra saída além do incesto. – Não – disse o Bigodudo.

– Não? – A Bíblia proíbe o incesto. A resposta está na ciência. É isso que estou tentando dizer. A ciência e a religião não se excluem. Tudo tem a ver com a Teoria da Evolução de Darwin.

Com interesse aparentemente sincero, a Piaçava perguntou: – Como? – Pense. Segundo todos esses darwinistas, de quem é que o homem descende? – Dos primatas. – Certo. Macacos, gorilas, seja lá o que for. Pois bem. Caim estava lá, rejeitado pela família, vagando sozinho por esse glorioso planeta. – O Bigodudo deu um tapinha no braço de Marianne, certificando-se de que ela também estava pres- tando atenção. – Está entendendo?

Com uma resistência notável, ela se virou e olhou para ele. Sem o bigode pornô, talvez até desse para encarar, pensou.

– Estou – respondeu ela.

– Ótimo. – Ele sorriu e arqueou as sobrancelhas. – Ora, Caim era homem, certo?

– Certo – disse a Piaçava, antes que fosse chutada para escanteio. – Com necessidades e desejos típicos de um homem, certo? – Certo. – Então ele estava lá, perambulando, se sentindo o rei do pedaço. Mas cheio de necessidades. Aí, um belo dia, enquanto andava na floresta – outro sorriso, outro carinho no bigode –, Caim se depara com uma macaca bem atraente. Ou uma gorila. Ou uma chimpanzé.

Marianne o encarou e disse: – Você só pode estar brincando. – Não, não estou. Pense nisso. Caim se vê diante de um membro qualquer da espécie dos macacos. É o que tem de mais parecido com um ser humano, não é?

Então ele se joga em cima da macaca e os dois... você sabe. – Só para garantir, caso ela não soubesse, o Bigodudo fez o gesto com as mãos. – E a macaca fica grávida.

– Que horror! – exclamou a Piaçava. Marianne quis voltar à tequila, mas o homem a cutucou outra vez. – Você não vê como faz sentido? A macaca tem o bebê. Meio primata, meio homem. Parece um macaco, mas aos poucos, com o tempo, o gene humano vai predominando. Viram? Voilà! Evolucionismo e criacionismo juntos.

Ele sorriu como se estivesse prestes a receber uma medalha.

– Vamos ver se entendi direito – disse Marianne. – Deus proíbe o incesto, mas não tem nada contra o bestialismo, é isso?

O Bigodudo a encara com condescendência e dá mais alguns tapinhas no braço dela como se dissesse: “Calminha, calminha.”

– O que estou tentando dizer é que esses caras da universidade, que ficam abanando o diploma dizendo que religião e ciência não são compatíveis, não têm um pingo de imaginação. Esse é o problema. Os cientistas só enxergam através de seus microscópios. E os caras da religião só vêem o que está escrito na Bíblia. Nenhum deles enxerga a floresta, só as árvores.

– Ah, a floresta – disse Marianne. – Por acaso é a mesma da macaca atraente?

Então, de repente, o clima mudou. Ou talvez fosse apenas a imaginação de Marianne. O Bigodudo ficou mudo e a encarou por um bom tempo. Ela não gostou nada disso. Havia algo de diferente ali. Algo errado. Os olhos dele eram muito pretos e opacos, sem vida, como se jogados ali por obra de um acaso qualquer.

Ele piscou e se aproximou dela.

Examinando-a. – Puxa, princesa. Você estava chorando? Marianne virou-se para a Piaçava, que também a examinava. – Seus olhos estão vermelhos – prosseguiu ele. – Não quero me meter onde não fui chamado, mas... tudo bem com você? – Tudo – disse Marianne. Teve a impressão de que estava enrolando a língua.

– Eu só queria beber em paz. – Claro – disse ele, erguendo as mãos. – Tudo bem. Eu não queria perturbar você. Marianne fixou o olhar na bebida, esperando detectar algum movimento com a visão periférica. Não aconteceu nada. O Bigodudo ainda estava parado a seu lado.

Ela deu mais um grande gole na tequila. O bartender limpava uma caneca de cerveja com a destreza de quem já havia feito aquilo milhares de vezes. Marianne meio que esperava vê-lo cuspir na caneca, como faziam os garçons do Velho Oeste. O bar estava escuro. Do outro lado do balcão havia o clássico espelho de vidro fumê, para que as pessoas pudessem observar seus vizinhos sob uma luz menos cruel.

Marianne deu mais uma conferida no Bigodudo pelo espelho.

Ele estava olhando fixamente para ela. Marianne sentiu-se hipnotizada por aquele par de olhos opacos, incapaz de se mexer.

O olhar fixo lentamente se transformou num sorriso e Marianne sentiu um calafrio na nuca. Vendo o sujeito dar as costas e sair, suspirou aliviada. Balançou a cabeça. Caim engravidando uma macaca... Com certeza.

Ela ergueu o copo com a mão trêmula. Aquela teoria absurda fora uma boa distração, mas os pensamentos sombrios não tardaram a voltar.

Marianne refletiu sobre o que havia feito. A idéia até que lhe parecera boa de início. Parecera mesmo? Será que ela tinha analisado todos os lados da questão? O ônus pessoal, as conseqüências para os outros, as vidas modificadas para sempre?

Provavelmente não.

O resultado foi mágoa. Injustiça. Fúria. E, sobretudo, aquele desejo primitivo e ardente de vingança. Não se tratava apenas daquela vingancinha bíblica (e por quenão,evolucionista?) de“ olho por olho, dente por dente”.Qualseriaomelhor nome para o que ela fizera?

Retaliação em massa.

Marianne fechou os olhos e os esfregou. Sentiu o estômago roncar. Estresse, pensou. Reabrindo os olhos, teve a impressão de que o bar estava mais escuro do que antes. Sentiu a cabeça rodar.

Ainda era cedo demais para isso. Quantas doses ela já havia tomado? Marianne buscou apoio no balcão do mesmo modo que alguém se agarra ao colchão quando, deitando-se depois de uma noite de bebedeira, sente a cama rodar e teme ser arremessado janela afora pela força centrífuga.

Os roncos no estômago ficaram mais intensos. Os olhos se arregalaram subitamente quando ela sentiu uma pontada aguda no abdome. Marianne escancarou a boca, mas o grito não saiu, sufocado pela dor. Ela se debruçou sobre o balcão.

– Você está bem?

Era a voz da Piaçava. Parecia muito distante. A dor era terrível. A pior que ela havia sentido desde... bem, desde as dores do parto. Parir alguém: um pequeno teste de resistência por parte de Deus. Ah, sabe essa criaturinha que você deverá amar mais que tudo pelo resto da vida? Quando ela sair, vai produzir uma dor que você nem imaginava que existia.

Belo começo para uma relação, não é? Que explicação teria o Bigodudo para isso? Giletes rasgando suas entranhas como se estivessem lutando para sair, era o que ela sentia agora. Não tinha a menor capacidade de formular qualquer pensamento racional. Havia sido consumida pela dor. Até se esquecera do que tinha feito, do estrago que causara, não apenas no passado recente, mas a vida inteira. Seus pais haviam murchado e envelhecido com as atitudes inconseqüentes da filha adolescente. Seu primeiro marido fora destruído pela constante infidelidade dela; o segundo, pela forma como era tratado. E também havia sua filha, as poucas pessoas com as quais ela conseguira conviver amigavelmente por mais de algumas semanas, os homens que ela havia usado antes de ser usada por eles...

Os homens. Talvez isso também tivesse alguma coisa a ver com vingança. Machucá-los antes de ser machucada.

Marianne estava certa de que iria vomitar. – Banheiro... – foi só o que conseguiu dizer. – Eu ajudo você. Era a Piaçava de novo. Marianne sentiu que ia despencar do banco. Mãos fortes a seguraram pelas axilas antes que ela caísse. Alguém – a Piaçava – a conduziu para os fundos. Ela seguiu trôpega até o banheiro. A garganta estava insuportavelmente seca. Era impossível erguer o tronco por causa das pontadas no estômago.

As mãos fortes ainda a mantinham de pé. Marianne olhava para baixo. Penumbra. Só o que conseguia ver eram seus próprios pés se arrastando, mal saindo do chão. Ela tentou levantar a cabeça, viu que o banheiro já estava perto e imaginou se teria forças para chegar até lá. Teve.

Mas seguiu em frente.

Guiada pela Piaçava, passou direto pela porta do banheiro. Tentou pisar no freio. Mas o cérebro não obedeceu ao comando. Tentou gritar, avisar à mulher que ela havia passado do banheiro, mas a boca também não articulava direito.

– Vamos sair por aqui – sussurrou a Piaçava. – Vai ser melhor. Melhor? Marianne sentiu o corpo sendo empurrado contra a barra de metal de uma saída de emergência. A porta cedeu. Saída dos fundos. A mulher tinha razão, pensou Marianne. Não fazia sentido emporcalhar o banheiro. Melhor sujar o beco de trás. Além disso, um pouco de ar fresco poderia ajudar.

A porta se escancarou e bateu com estrépito contra a parede externa. Marianne tropeçou para fora. O ar fresco de fato a fez se sentir melhor. Não completamente. A dor ainda estava lá. Mas o friozinho no rosto era bom.

Foi então que ela percebeu a van.

Uma van branca de vidros pretos. As portas traseiras estavam abertas, como uma bocarra prestes a devorá-la. E parado ao lado delas, esperando para rece- ber Marianne e empurrá-la para dentro, estava o sujeito com o farto bigodão.

Marianne tentou endireitar o corpo, mas não conseguiu.

Foi arremessada pelo Bigodudo como se fosse um saco de batatas. Aterrissou no chão da van com um baque. Ele subiu logo depois dela, fechou as portas e se aproximou. Marianne dobrava-se em posição fetal. O estômago ainda doía, mas o medo agora era maior.

O sujeito arrancou o falso bigode e abriu um sorriso. A van arrancou. A Piaçava devia estar dirigindo.

– Olá, Marianne – disse ele.

Ela não conseguia se mexer nem respirar. Ele se sentou ao lado dela, ergueu a mão fechada em punho e desferiu um soco em seu estômago. A dor, antes lancinante, passava agora a uma nova dimensão.

– Cadê a fita? – perguntou o sujeito. E começou a machucá-la de verdade.

–VOCÊS TÊM CERTEZA DE que querem ir adiante com isso? Há ocasiões em que a gente salta do penhasco. Como naquele desenho ani- mado do Papa-léguas: o Coiote sai em disparada e continua correndo mesmo depois de ultrapassar a borda do penhasco; de repente pára no ar, olha para baixo e sabe que vai despencar, que não há nada que possa fazer a respeito. Mas, às vezes, talvez na maioria delas, a situação não é tão clara assim. Estamos no escuro, caminhando lentamente à beira do abismo, sem saber ao certo para onde estamos indo. Os passos são hesitantes, por causa da escuridão da noite. Não nos damos conta de como estamos próximos da borda, de que o solo pode sumir a qualquer momento, de que um mero escorregão pode nos lançar encosta abaixo. Foi então que Mike percebeu que ele e Tia estavam nesta borda: quando o tal do instalador, um rapaz desleixado, com cabelos desgrenhados, braços finos e cheios de tatuagem, unhas grandes e sujas, olhou para trás e, numa voz demasiadamente solene para a pouca idade, fez a maldita pergunta.

Vocês têm certeza de que querem ir adiante com isso?

Nenhum deles deveria estar naquele quarto. Claro, Mike e Tia Baye estavam em sua própria casa, uma mansão como tantas outras nos subúrbios de Livingston, mas aquele quarto havia se transformado em território terminantemente proibido para eles, os inimigos. Mike percebeu que ainda havia ali uma quantidade surpreendentemente grande de resquícios do passado. Os troféus de hóquei não tinham sido recolhidos, mas, se antes pareciam dominar o ambiente, agora davam a impressão de estarem acuados no fundo das prateleiras. Pôsteres de Jaromir Jagr e de Chris Drury, o mais recente ídolo dos Rangers de Nova York, ainda podiam ser vistos nas paredes, mas haviam sido desbotados pelo sol ou talvez pela mera falta de atenção.

Mike se deixou levar pelas lembranças. Recordou-se de como o filho, Adam, gostava de ler as historinhas de horror da série Goosebumps, bem como o livro de Mike Lupica sobre jovens atletas que conseguiram vencer terríveis obstá- culos. Costumava ler o caderno de esportes com o mesmo afinco que um eru- dito estuda o Talmude, com especial interesse nas estatísticas do hóquei. Mandava cartas para seus jogadores prediletos, pedindo autógrafos, e, quando os recebia, pregava-os na parede. Quando ia ao Madison Square Garden, insistia para ir até a saída dos jogadores na rua 32, na altura da Oitava Avenida, para conseguir alguns pucks* autografados.

Tudo isso já não fazia mais parte, senão daquele quarto, da vida de seu filho.

Adam havia crescido. Estava com 16 anos. Não era mais a criança de antes, mas um adolescente que caminhava a passos largos e difíceis rumo à vida adulta. O que era normal. Mas o quarto parecia resistir à passagem do tempo. Mike chegou a pensar que esse vínculo com o passado talvez trouxesse ao filho algum conforto. Talvez alguma parte de Adam desejasse voltar aos dias em que ele que- ria ser médico como o adorado pai, seu herói.

Talvez fosse otimismo demais.

O instalador – Mike não conseguia lembrar o nome dele, Brett, ou algo assim – repetiu a pergunta:

– Vocês têm certeza?

Tia estava de braços cruzados, o rosto circunspecto, aparentemente enregelado. Aos olhos de Mike, parecia mais velha, porém não menos bonita. Ela respondeu sem nenhuma dúvida, apenas com uma pontinha de exasperação:

– Sim, temos certeza. Mike não disse nada.

O quarto do filho deles estava relativamente escuro, iluminado apenas pela luminária da escrivaninha. Eles falavam a meia-voz, embora não houvesse a menor possibilidade de que alguém os visse ou escutasse. Jill, sua filha de 11 anos, estava na aula. Adam viajara numa excursão da escola e só voltaria no dia seguinte. Não quisera ir, claro – excursões para ele agora eram um “mico” –, mas por algum motivo a viagem era obrigatória, e até mesmo o mais “vagaba” de seus colegas “vagabas” estaria lá para engrossar o coro dos descontentes.

– Vocês sabem como isto funciona, não sabem? Tia fez que sim com a cabeça, em total sincronia com o não de Mike. – O programa vai fazer um registro de cada tecla que o filho de vocês apertar – explicou Brett. – No fim do dia, a informação será compilada e um relatório será enviado por e-mail. Vai estar tudo lá: todos os sites que ele visitou, os e-mails que mandou ou recebeu, os chats de que participou. Se Adam abrir o PowerPoint ou criar um documento do Word, vocês também vão ficar sabendo. Tudo. Se quiserem, podem até monitorá-lo em tempo real. É só clicar nessa opção aqui.

Ele apontou para um pequeno ícone com as palavras LIVE SPY! num vermelho gritante. Mike correu os olhos pelo quarto. Os troféus de hóquei pareciam zombar dele. Era estranho que Adam não os tivesse tirado dali. Mike havia jogado hóquei nos tempos da universidade, em Dartmouth. Fora convocado pelos Rangers de Nova York, jogara na liga júnior durante um ano e até mesmo participara de dois jogos da liga principal. Adam havia herdado essa paixão pelo esporte. Aprendera a patinar aos 3 anos de idade. Jogara como goleiro no time infantil. As traves enferrujadas ainda estavam lá embaixo, diante da garagem, a rede puída pelo tempo. Mike passara um sem-número de horas felizes arremessando pucks para o filho. Adam era um ótimo goleiro, seguramente teria uma vaga na equipe de uma universidade qualquer, mas desistira de tudo seis meses atrás.

Assim, do nada. Aposentara o taco, a máscara, as joelheiras e braçadeiras, dizendo que não queria mais nada com aquilo.

Será que foi aí que tudo começou?

Teria sido esse o primeiro sinal de seu declínio, de seu recolhimento? Mike tentou respeitar a decisão do filho e não fazer como tantos pais impositivos que aparentemente igualam sucesso nos esportes a sucesso na vida. Mas, na verdade, ficou profundamente abalado.

No entanto, não mais que Tia. – Estamos perdendo nosso filho – declarou ela. Mike não tinha tanta certeza assim. Adam havia sofrido uma grande tragédia – o suicídio de um amigo – e, claro, ainda se debatia com aquela angústia típica dos adolescentes. Era mal-humorado e caladão. Ficava o tempo todo trancado no quarto, quase sempre debruçado sobre o maldito computador, jogando, batendo papo ou fazendo sabe-se lá o quê. Mas não era isso que fazia a maioria dos adolescentes? Ele mal falava com os pais: raramente respondia às perguntas deles e, quando o fazia, recorria a monossílabos ou resmungos. Mas... o que havia de tão anormal nisso?

A monitoração tinha sido idéia de Tia. Ela era advogada criminalista no escri- tório da Burton & Crimstein em Manhattan. Um dos casos no qual trabalhara envolvia um esquema de lavagem de dinheiro comandado por um certo Pale Haley, que havia sido fisgado depois de ter seus e-mails monitorados pelo FBI.

Brett era o técnico de informática da empresa onde Tia trabalhava. Mike agora olhava para as unhas sujas dele, que estavam tocando o teclado de Adam. Era nisso que ele, Mike, não conseguia parar de pensar. Aquele sujeito com aquelas unhas nojentas estava no quarto de seu filho, fazendo o que bem enten- dia com seu bem mais precioso: aquele computador.

– Só mais um segundo – disse Brett.

Mike dera uma olhada no site da E-SpyRight. Tinha lido as primeiras cha- madas, escritas em letras enormes e em negrito:

SEUS FILHOS TÊM SIDO ABORDADOS POR PEDÓFILOS? SEUS FUNCIONÁRIOS ESTÃO ROUBANDO VOCÊ?

E depois, em letras ainda maiores, o argumento que fisgou Tia:

VOCÊ TEM O DIREITO DE SABER!

O site oferecia uma lista de testemunhos:

“O produto de vocês salvou minha filha do pior pesadelo que um pai pode ter: um predador sexual.

Obrigado, E-SpyRight!”

Bob – Denver, CO

“Descobri que um de nossos mais confiáveis funcionários estava desfalcando a empresa. Mas não teria descoberto nada sem a ajuda do programa de vocês.” Kevin – Boston, MA Mike havia resistido. – É o nosso filho – argumentara Tia. – Acha que não sei disso?

– Então? Não fica preocupado? – Claro que fico. Mas... – Mas o quê? Somos os pais dele. – Em seguida, como se estivesse relendo o site, emendou: – Temos o direito de saber. – Temos o direito de invadir a privacidade dele? – Para protegê-lo? Claro que temos. É o nosso filho. Mike balançou a cabeça. – Não só temos o direito – prosseguiu Tia, aproximando-se –, como também o dever. – Seus pais sabiam de tudo o que você fazia? – Não. – Tudo o que você pensava? Todas as conversas que tinha com suas amigas? – Não. – Pois é disso que estamos falando. – Pense nos pais de Spencer Hill – retrucou ela. Isso fez Mike se calar. Eles se entreolharam. – Se eles pudessem voltar no tempo – disse Tia, afinal –, se Betsy e Ron pudessem ter o filho deles de volta... – Por favor, Tia. – Não, escute. Se eles pudessem voltar no tempo, se o Spencer ainda estivesse vivo, você não acha que eles iam querer ficar de olho no filho, muito mais do que antes?

Spencer Hill, colega de Adam, havia se suicidado quatro meses antes. A experiência tinha sido devastadora não só para Adam como para todo o restante da turma.

– Você não acha que isso explica o comportamento de Adam? – O suicídio de Spencer? – perguntou Tia. – Claro. – Até certo ponto, sim. Mas você sabe que ele já andava diferente. Isso apenas piorou as coisas.

– Então, se de repente nós déssemos mais um tempinho para ele... – Não. – Tia foi categórica. – Essa tragédia torna o comportamento de Adam compreensível, mas não menos perigoso. Muito pelo contrário. Mike refletiu um instante. – Temos de contar a ele – disse afinal. – Contar o quê?

– Que estamos monitorando o computador dele. – Isso não faz o menor sentido – replicou Tia, com uma careta.

– Assim ele vai saber que está sendo vigiado.

– Não é como colocar um guarda de trânsito na cola de uma pessoa para que ela não ultrapasse o limite de velocidade.

– É exatamente isso.

– Ele vai continuar fazendo o que fazia antes na casa de um amigo, numa lan-house ou sei lá onde.

– E daí? Temos de contar. Toda a intimidade do nosso filho está nesse computador.

Tia deu mais um passo à frente e pousou a mão no peito do marido. Mesmo agora, depois de tantos anos de casamento, o toque dela ainda lhe causava certo frisson.

– Adam está em apuros, Mike. Você não percebe isso? Nosso filho está em apuros. Talvez esteja bebendo, usando drogas, sei lá. Não dá para tapar o sol com a peneira.

– Não estou tapando o sol com a peneira.

– Você quer o caminho mais fácil – disse Tia, quase em tom de súplica. – O que você espera? Que tudo não passe de uma fase e que Adam logo saia dela?

– Não foi isso que eu disse. Mas pense um pouquinho. Essa tecnologia é muito nova. Todos os segredos, todas as emoções mais íntimas do nosso filho estão nesse computador. Você gostaria que seus pais soubessem de tudo sobre você?

– O mundo não é mais o mesmo – retrucou ela. – Tem certeza? – Qual é o problema? Somos os pais dele. Só queremos o bem do nosso filho. Mike balançou a cabeça novamente. – Ninguém quer saber tudo o que se passa na cabeça de uma pessoa – disse.

– Certas coisas devem ser mantidas em privacidade. Tia afastou a mão. – Em segredo, você quer dizer. – É.

– Você está dizendo que uma pessoa tem o direito de guardar segredos? – Claro que tem. Ela o fitou de um jeito estranho, do qual ele não gostou muito. – Você também tem segredos? – perguntou ela.

– Não foi isso que eu disse. – Esconde coisas de mim? – Não. Mas também não quero que você fique sabendo de cada pensamento meu. – Nem eu quero que você fique sabendo dos meus.

Os dois se calaram. Até que Tia, recuando alguns passos, disse:

– Mas se eu tiver que escolher entre proteger meu filho e respeitar a intimi- dade dele... Vou protegê-lo.

A discussão, que Mike não queria classificar como briga, durou um mês. Ele tentou seduzir o filho de volta. Convidava-o para ir ao shopping, ao fliperama, até mesmo a shows. E todos os convites eram recusados. Adam ficava na rua até altas horas, sem qualquer respeito pelas regras. Não aparecia mais para jantar. Suas notas começaram a despencar. A certa altura, concordou em se consultar com um terapeuta, que identificou sintomas de depressão. Disse que talvez fosse o caso de receitar algum medicamento, mas antes gostaria de ver Adam pelo menos mais uma vez. O garoto bateu o pé e disse que não ia.

Quando os pais insistiram, sumiu por dois dias. Nem sequer atendeu o celular. Mike e Tia entraram em pânico. No fim das contas, ele estava escondido na casa de um amigo.

– Estamos perdendo nosso filho – repetiu Tia. O marido não disse nada. – No fundo, Mike, não passamos de tutores dos nossos filhos. Cuidamos deles durante um tempo e depois eles se vão. Só quero uma coisa: que Adam permaneça vivo e saudável até o fim da nossa tutela. Depois é com ele.

Mike assentiu. – Está bem, então – disse. – Tem certeza? – Não. – Nem eu. Mas não consigo parar de pensar no Spencer. Ele balançou a cabeça. – Mike? Mike olhou para a mulher e ela abriu aquele mesmo sorriso torto que ele vira

pela primeira vez em Dartmouth, num dia frio de outono. O sorriso que, feito um saca-rolhas, perfurara seu coração para nunca mais sair de lá.

– Amo você – disse ela. – Também amo você. E foi assim que eles concordaram em espionar o filho mais velho.

DURANTE TRÊS SEMANAS NÃO HOUVE nenhum e-mail ou mensagem instan- tânea que indicasse algum perigo ou desse qualquer pista. Até que a cal- maria foi drasticamente interrompida.

O telefone na estação de trabalho de Tia zumbiu. – Na minha sala, agora – disse uma voz ríspida. Era Hester Crimstein, a “chefona” do escritório de advocacia onde Tia trabalhava. Hester ligava para seus subalternos pessoalmente, nunca pedia isso à secretária. E sempre parecia um tanto irritada, como se o funcionário tivesse a obrigação de antever que estava sendo requisitado e poupar a chefe do incômodo de chamá-lo, materializando-se na sala dela num passe de mágica.

Seis meses antes, Tia voltara a trabalhar como advogada na Burton & Crimstein. Burton morrera havia muitos anos. Crimstein, a célebre e temida Hester Crimstein dos tribunais, estava bem viva e em pleno comando das coisas. Era internacionalmente conhecida como uma espécie de enciclopédia do crime e até comandava um programa na TV paga, com o engenhoso nome de Crimstein e o crime.

– Tia? – rugiu Hester ao telefone. Parecia sempre estar rugindo. – Estou indo. Tia espremeu o relatório do E-SpyRight na primeira gaveta de sua mesa e seguiu pelo corredor: de um lado, as salas da velha guarda abençoadas pelo sol; do outro, as estações de trabalho claustrofóbicas dos demais funcionários. Na Burton & Crimstein vigorava um perfeito sistema de castas, com apenas uma entidade governante. Havia os sócios seniores, claro, mas Hester Crimstein não deixava o nome de nenhum deles aparecer na fachada.

Tia chegou ao espaçoso gabinete no fim do corredor. A assistente de Hester mal levantou os olhos quando ela passou. A porta da sala da chefe estava aberta, como de costume. Tia parou à entrada e se anunciou.

Hester andava de um lado para outro na sala. Era uma mulher baixa, mas não parecia pequena. Tinha um porte compacto que sugeria poder e até mesmo perigo. Ao caminhar, dava a impressão de que estava cercando uma presa.

– Preciso que você tome um depoimento em Boston, no sábado – disse ela sem nenhum preâmbulo. Tia entrou na sala. Hester, com seus cabelos descoloridos e sempre arrepia- dos, em geral dava a impressão de estar preocupada com alguma coisa, mas ainda assim totalmente no controle da situação. Certas pessoas prendem nossa atenção. Hester Crimstein, na verdade, parecia que pegava seus interlocutores pela gola e os sacudia até obter deles a mais absoluta concentração.

– Claro, sem problema – disse Tia. – Qual é o caso em questão? – Beck. Tia já havia previsto. – Aqui está o arquivo. Leve o especialista em informática com você. Aquele garoto com a postura horrível e aquelas tatuagens monstruosas. – Brett – disse Tia. – Ele mesmo. Quero que vocês vasculhem o computador do cara. Hester entregou a pasta e voltou a andar de um lado para outro. Tia examinou o conteúdo e disse: – É a testemunha do bar, não é? – Exatamente. Pegue um vôo amanhã. Vá para casa e estude o caso.

– Tudo bem. Hester parou de repente. – Tia? Tia estava folheando o arquivo, esforçando-se para se concentrar no caso, em Beck e no depoimento dele, bem como na oportunidade de ir a Boston. Mas o maldito relatório do E-SpyRight não lhe saía da cabeça. Ela olhou para Hester.

– Está preocupada com alguma coisa? – perguntou-lhe a chefe. – Não, só com esse depoimento. – Ótimo. Porque esse cara é um mentiroso miserável. Está me entendendo? – Um mentiroso miserável – repetiu Tia.

– Isso mesmo. Definitivamente não viu o que afirma ter visto. Não tinha como.

Entendeu? – E você quer que eu prove isso? – Não. – Não? – Na verdade, quero exatamente o contrário. Tia franziu a testa, confusa. – Acho que não entendi. Você não quer que eu prove que ele é um mentiroso miserável? – Exatamente. Tia encolheu os ombros ligeiramente e disse: – Pode me explicar melhor? – Claro. Quero que você se sente diante dele, faça um milhão de perguntas e fique balançando a cabeça lentamente. Use alguma coisa mais justa, talvez até com um decote mais ousado. E sorria o tempo inteiro, como se estivesse em um primeiro encontro e achasse tudo o que ele diz absolutamente fascinante. Em nenhum momento você vai se mostrar cética. Tudo o que ele disser será a mais pura verdade.

Tia fez que sim com a cabeça. – Você quer que ele fale à vontade. – Isso. – Quer que tudo faça parte dos autos. Tudo o que ele tiver para contar. – Isso. – Para depois acabar com ele no tribunal. Hester arqueou uma das sobrancelhas. – Claro, mas com a tradicional elegância de Hester Crimstein. – Tudo bem – disse Tia. – Entendido. – Quero servir os ovos dele no café da manhã. Sua tarefa, dando continuidade à metáfora, é comprar os ingredientes. Acha que pode fazer isso? E o relatório sobre o computador de Adam, o que fazer com ele? Bem, antes de mais nada, avisar Mike. Sentar com ele, repassar os pontos mais preocupantes, decidir o próximo passo... – Tia?

– Claro que posso.

Hester deu um passo na direção de Tia. Era pelo menos uns 15 centímetros mais baixa que ela, embora aparentasse o contrário.

– Sabe por que escolhi você para essa tarefa? – perguntou.

– Porque me formei em Columbia, porque sou ótima no que faço e porque nos seis meses que trabalho aqui ainda não me deram nenhum caso realmente à minha altura?

– Nada disso. – Então por quê? – Porque você é velha. Tia arregalou os olhos. – Não desse jeito que você está pensando. Quer dizer, você tem o quê?

Quarenta, quarenta e poucos? Tenho pelo menos 10 anos mais que você. Mas a maioria das pessoas neste escritório ainda está engatinhando. São bebês, doidos para dar uma de herói, para mostrar seu valor.

– E eu não? Hester deu de ombros. – Se fizer isso, estará na rua. Sem encontrar o que dizer, Tia permaneceu calada. Baixou a cabeça e examinou o arquivo em suas mãos, embora o pensamento insistisse em voltar para o filho e aquele maldito computador, para o tal relatório.

Hester esperou um instante. Encarava Tia com o mesmo olhar com o qual costumava desestabilizar testemunhas nos tribunais. Tia olhou de volta, tentando não se deixar abalar.

– Por que você escolheu este escritório? – perguntou Hester. – Quer saber a verdade? – De preferência.

– Por sua causa – respondeu Tia.

– E eu deveria me sentir lisonjeada? Tia deu de ombros. – Você pediu a verdade. E a verdade é que sempre admirei seu trabalho. – Eu sei, eu sei, eu sou o máximo – disse Hester, sorrindo. – Mas o que mais? – É basicamente isso – disse Tia. – Não – devolveu Hester. – Tem mais. – Não sei do que você está falando. Hester sentou-se do outro lado da mesa e apontou uma cadeira para que Tia se sentasse também.

– Quer que eu explique de novo? – falou. – Adoraria. – Você escolheu este escritório porque ele é comandado por uma feminista.

Achou que eu entenderia seus motivos para ter ficado parada não sei quantos anos para criar seus filhos.

Tia não disse nada. – Estou certa, não estou? – Até certo ponto. – Mas, veja bem: ser feminista não significa ajudar uma companheira de causa.

Significa dar oportunidades iguais. Dar opções às mulheres, não garantias. Tia esperou que ela continuasse. – Você escolheu a maternidade. Não deve ser punida por isso. Nem privilegiada. Perdeu esses anos de trabalho. Saiu de campo. Não dá simplesmente para voltar, como se nada tivesse acontecido. Oportunidades iguais. Se um homem tivesse feito a mesma coisa, tirado um tempo para cuidar da família, seria tratado da mesmíssima forma, percebe?

Tia respondeu com um gesto neutro. – Você disse que admirava meu trabalho – prosseguiu Hester. – Disse.

– Optei por não ter uma família. E isso, você admira também?

– Não creio que seja o caso de admirar ou não.

– Exatamente. E o mesmo vale para a sua opção. Optei pela carreira. Não saí de campo. Portanto, no âmbito de uma carreira jurídica, agora estou à sua frente. Mas, no fim do dia, quando volto para casa, não tem cerquinha branca, não tem médico boa-pinta à minha espera, nem casal de filhos para abraçar. Está entendendo o que quero dizer?

– Estou.

– Ótimo. – Hester intensificou ligeiramente o célebre olhar e suas narinas latejaram. – Portanto, enquanto estiver nesta sala, na minha sala, você não vai pensar em outra coisa que não sejam os meus interesses ou a melhor forma de servir a eles. Não quero ninguém na minha frente pensando no que vai fazer para o jantar ou se o filho vai chegar atrasado ao treino de futebol, estamos entendidas?

Tia pensou em protestar, mas o tom de voz de Hester não havia deixado muito espaço para debates.

– Claro. – Ótimo. O telefone tocou e Hester atendeu. – Diga. – Silêncio. – Aquele babaca. Falei que era para ele ficar de bico fechado. – Hester girou a cadeira, ficando de costas. Tia entendeu a deixa e saiu, desejando ardentemente que seus problemas se resumissem à porcaria de um jantar ou a um atraso do filho.

Parou no corredor, colocou a pasta debaixo do braço e pegou o celular. Apesar do sermão que acabara de ouvir, imediatamente voltou a pensar no e-mail que havia lido no relatório do E-SpyRight.

Os relatórios geralmente eram muito extensos. Adam navegava tanto e visitava tantos sites, tinha tantos “amigos” em páginas de relacionamento como MySpace e Facebook, que a monitoração resultava em impressões ridiculamente volumosas. Quase sempre, Tia não dava mais que uma rápida olhada, como se isso diminuísse o grau da invasão de privacidade, mas a verdade era que ela não suportava saber tanto a respeito do filho.

Tia voltou correndo para sua mesa. Lá estava a tradicional fotografia da família, todos os quatro empoleirados na escada de casa: Mike, Jill, Tia e, claro, Adam, num de seus raros momentos de transigência. Apesar dos sorrisos força- dos, Tia muitas vezes já havia buscado alento nessa fotografia.

Ela tirou o relatório da gaveta, localizou o e-mail que tanto a havia assustado e o leu novamente. Nada tinha mudado. Pensando no que deveria fazer, concluiu que não poderia decidir sozinha.

Só então digitou a mensagem no celular. Selecionou o número de Mike e enviou.

Mike ainda estava com os patins de gelo nos pés quando recebeu a mensagem. – É da Gestapo? – perguntou Mo. Mo já havia descalçado os patins. O vestiário, como todos os vestiários dos rinques de hóquei, fedia terrivelmente. O problema era o suor que se acumulava nas braçadeiras e joelheiras. Um enorme ventilador girava de um lado para o outro. Não ajudava muito. Os jogadores sequer o notavam. Se um desavisado entrasse ali, correria o risco de desmaiar com o fedor.

Mike viu que era o número da mulher. – Ela mesma – disse. – Ih, rapaz, sujou. – Pois é. Mensagem de texto. Sujou. Mo fez uma careta. Eles eram amigos desde os tempos de Dartmouth. Tinham jogado juntos na equipe universitária: Mike, o grande artilheiro da ponta esquerda, e Mo, o grandão da defesa. Quase 25 anos depois de formados – Mike agora um cirurgião de transplantes, e Mo, agente da CIA –, ainda jogavam nas mesmas posições.

Os outros jogadores pelejavam para se aliviar do pesado uniforme. Estavam ficando velhos, e o hóquei era um esporte para gente jovem.

– Ela sabe que hoje é a noite do hóquei, não sabe? – Sabe. – Então não devia ter ligado. – Foi só uma mensagem de texto, Mo.

– Você dá um duro danado naquele hospital a semana inteira – disse ele, com aquele sorrisinho que não deixava ninguém saber se estava brincando ou falando sério. – A noite do hóquei é sagrada. Ela já devia saber disso.

Mo estava lá naquele dia frio de outono quando Mike viu Tia pela primeira vez. Na verdade, fora o primeiro a vê-la. Eles jogariam em casa a primeira partida do campeonato, contra a equipe de Yale. Ambos cursavam o terceiro ano. Tia estava nas arquibancadas. Durante o aquecimento, quando os jogadores simplesmente patinam em círculos enquanto se alongam, Mo dera uma cotovelada no amigo e apontara o queixo na direção de Tia, dizendo:

– Que peitos! Foi assim que tudo começou. Mo defendia a seguinte tese: eles jamais teriam de brigar por causa de mulher. Mo sempre ficaria com aquelas que se sentiam atraídas pelo tipo bad boy, e Mike, com as que sonhavam com cercas brancas e bebês. Portanto, lá pelo terceiro tempo do jogo, com Dartmouth vencendo por uma margem bastante confortável, Mo provocou uma briga e cobriu de pancada um dos jogadores de Yale. Enquanto socava o adversário, virou-se para a arquibancada, piscou para Tia e avaliou a reação dela.

Os árbitros apartaram a briga. A caminho do espaço onde ficavam os jogadores temporariamente suspensos, ele se aproximou de Mike e sussurrou: “É sua.” Palavras proféticas. Eles se encontraram numa festa depois do jogo. Tia chegara acompanhada de um formando no qual não tinha o menor interesse. Ela e Mike ficaram conversando sobre seus respectivos passados. Mike disse logo de cara que pretendia ser médico e ela quis saber em que momento da vida ele havia descoberto a vocação. – Acho que sempre soube – dissera ele.

Tia não aceitou a resposta. Quis mais detalhes: ele logo veria que aquele era o jeito dela. Por fim, Mike se surpreendeu ao confessar que havia sido uma criança bastante adoentada e que os médicos tinham se tornado seus heróis. Ela ouvira tudo de um modo que ninguém jamais fizera nem faria. Eles mergu- lharam de cabeça nessa relação. Jantaram juntos no refeitório do campus. E marcaram de estudar em seguida. Mike apareceu na biblioteca com velas e uma garrafa de vinho.

– Você se importa se eu ler a mensagem dela? – perguntou Mike. – Essa mulher é um pé no saco. – Então diga isso a ela, Mo. Não se iniba. – Se você estivesse na igreja, ela mandaria uma mensagem?

– Tia? Provavelmente.

– Está bem, leia. Depois diga a ela que estamos indo para uma boate de striptease.

– O.k., deixe comigo. Mike leu a mensagem:

Precisamos conversar. Sobre o relatório do computador. Venha direto para casa.

Mo percebeu a expressão no rosto do amigo. – O que foi? – perguntou. – Nada. – Ótimo. Então a boate de strip ainda está de pé, não está? – A gente nunca falou de boate nenhuma.

– Você é daqueles veadinhos que preferem falar “clube privê”, aposto.

– Seja como for, não posso ir. – Ela mandou você voltar para casa? – Estamos com um problema. – Que problema? A palavra “pessoal” não fazia parte do vocabulário de Mo. – Adam – respondeu Mike. – Meu afilhado? O que houve com ele? – Ele não é seu afilhado. Mo não era o padrinho de Adam porque Tia não havia permitido. Mas isso não o impedia de achar que era. Na cerimônia do batismo, ele se plantara ao lado do irmão de Tia, o verdadeiro padrinho. Mo apenas olhou para ele e, intimidado, o irmão de Tia não dissera nada.

– Então, o que houve? – Não sabemos ainda. – O problema de Tia é que ela é superprotetora. Você sabe disso. Mike guardou o celular. – Adam abandonou o hóquei. Mo fez uma careta como se Mike tivesse acabado de dizer que o filho havia se filiado a uma seita diabólica ou aderido ao bestialismo. – Uau.

Mike desatou os patins e os descalçou. – E por que você não me contou antes? – perguntou Mo. Mike encaixou os protetores nas lâminas e desabotoou as ombreiras. Outros jogadores passavam por ele, despedindo-se. Mesmo fora do gelo, a maioria achava melhor ficar longe de Mo.

– Fui eu que trouxe você para cá – disse Mo. – E daí? – E daí que você deixou seu carro no hospital. Não vou perder tempo levando você até lá. Vamos direto para sua casa. – Acho que não é uma boa idéia. – Que se dane. Quero ver meu afilhado. E descobrir o que vocês aprontaram com ele.



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